PETIÇÃO INICIAL – EXISTÊNCIA DE PROCESSO E RELAÇÕES ENTRE MOTIVAÇÃO DA DECISÃO JUDICIAL E A CAUSA DE PEDIR.

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JÚLIO CÉSAR BALLERINI SILVA

MAGISTRADO E PROFESSOR DE PÓS GRADUAÇÃO DA ESD – COORDENADOR NACIONAL DA PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO CIVIL E PROCESSO CIVIL DA MESMA INSTITUIÇÃO,

PROFESSOR DA PLATAFORMA ALBERT MESTRE EM PROCESSO CIVIL PELA PUC-CAMPINAS, ESPECIALISTA EM DIREITO PRIVADO PELA USP

INTRODUÇÃO

Um erro frequente do operador do direito processual civil seria pensar no sentido de que o Juiz seja o sujeito processual com maior poder de uma relação jurídica processual, e tal se dá na medida em que, não obstante o Juiz possa, de fato, decidir a lide, autorizar a produção de provas e mesmo desempenhar o poder de polícia em alguns casos, fato é que o mesmo opera de acordo com os parâmetros que lhe foram ditados pelo autor ao propor a demanda – tanto que o Juiz não pode fugir de tais parâmetros sob pena de prolatar decisão extra, ultra vel citra petita, o que é fator de nulidade de uma relação jurídica processual.

 

E como é cediço, desenvolveu-se no direito pátrio, a teoria dos vícios transrescisórios da decisão, formulada a partir da restauração da cláusula latina do Digesto Justianeu, no direito medieval, consubstanciada na forma da querela nullitatis insanabilis que ganhou força no ordenamento jurídico pátrio a partir da adoção da teoria no âmbito do Supremo Tribunal Federal pelo Ministro Barbosa Moreira, em meados da Década de 1.970.

 

Ou seja, costuma-se apontar no sentido de que uma petição inicial apta seja um efetivo pressuposto processual de existência de uma relação jurídica processual – em síntese, inexiste processo se a petição não estiver apta a produzir um processo regular, ideia que pode ser embasa nos fundamentos da chamada escala ponteana dos atos jurídicos – os três planos do negócio jurídico (e atos processuais são espécies de atos jurídicos dos quais os negócios também são espécie) pela qual os atos antes de serem válidos e produzirem efeitos jurídicos (o plano da eficácia é o plano da perfeição) faz mister que se complete o suporte fático ou fattispecie do ato processual (plano da existência).

 

Pelo óbvio que não se pretende confundir os requisitos de validade material com validade processual, eis que se cuida de condições diferentes, mas que podem ser reunidas em uma teoria geral comum. Sobre a escala ponteana, apontar-se-ia o quanto asseverado pelo próprio Pontes de Miranda, em seu célebre Tratado de Direito Privado:

 

“Não há relação jurídica nula nem direito nulo, nem pretensão nula, nem ação nula, como não há relação jurídica anulável, nem direito anulável, nem pretensão anulável, nem ação anulável. Nulo ou anulável ou rescindível é o ato jurídico, inclusive o ato jurídico processual, como a sentença”.
... Em suma, o “fato jurídico, primeiro, é; se é, e somente se é, pode ser válido, nulo, anulável, rescindível, resolúvel etc.; se é, e somente se é, pode irradiar efeitos, posto que haja fatos jurídicos que não os irradiam, ou ainda não os irradiam”. ... O ato jurídico inválido não é ato inexistente, não é zero-ato jurídico, é ato jurídico menor que um (< 1)6. Ato inexistente não tem defeito; ele não é.  MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado.3ª. ed. São Paulo: RT, 1983, t. 4, p. 4. 3 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de Direito Privado, t. 4, cit., p. 3. 4 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil. 3a. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998, t. 6, p. 141.

 

Em linhas gerais, antes que se considere da própria validade e eficácia do ato processual (campo antes da incidência apenas e tão somente da ação rescisória) alguns vícios processuais seriam extremamente graves a evidenciar a necessidade de declaração de sua inexistência pela via da ação autônoma, como se dá no caso dos autos (e como se apontará linhas adianta o estágio atual de desenvolvimento da teoria dos vícios transrescisórios permite mesmo a discussão de causas de graves nulidades).

 

Cuida-se evidentemente de situação que vem sendo estudada e desenvolvida pela dogmática processual, com contornos que tem sido fixados pela doutrina e pela jurisprudência dos Tribunais pátrios. Fredie Didier aponta no sentido de que a teoria da querela nullitatis pode ser invocada nos casos de falta dos pressupostos processuais de existência da relação jurídica processual (ou da superação do conceito de relação processual pelo módulo processual de Élio Fazzlari – a relação processual em uma sociedade de confiança ou justified trust – ideia de que as instituições devam inspirar confiança justificada das pessoas – pedra angular das democracias participativas com Estados democráticos e de direito – conforme proposto por exemplo por Alain Peyrufitèe – deve ser pautada pelo reconhecimento de que cada processo traga em si um módulo processual básico que garanta um mínimo de garantias processuais) ou mesmo para comprometimentos sérios da validade com causas de nulidades absolutas.

 

Para que não se perca tempo com questiúnculas de menor importância, impende ponderar no sentido de que, em decisão publicada no conhecido site CONJUR, em 15 de maio do corrente ano (2017), a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Resp 14.56.632, em aresto da lavra da Ministra Nancy Andrighi acabou por reconhecer uma certa fungibilidade entre as situações de ação rescisória e querela nullitatis, determinando a ruptura com prelados de formalismo exacerbado, autorizando que vícios graves sejam discutidos no bojo dos processos de querela nulitatis. Hoje, há, portanto, uma certa fungibilidade que permite a concessão de maior elastério ao conceito da querela nullitatis insanabilis.

 

E como é cediço, os pressupostos processuais de existência estão relacionados aos sujeitos essenciais do processo (daí se referir a doutrina a situações em que não se tenha petição inicial apta, citação válida, Juiz dotado de investidura e falta de capacidade postulatória) – ou seja, a petição inicial em condições de correção é dado muito importante para a gênese de um processo e até mesmo para permitir a formação de coisa julgada – se processo não existe, a sentença não existiu e não existindo não será passível de formação de coisa julgada (enquanto fator de imutabilidade dos efeitos de uma decisão).

Ainda sobre a validade processual não seria desnecessário apontar no sentido de que precedentes recentes do STJ tem entendido a questão da nulidade ou vaidade do ato processual sempre à luz do pragmático adágio de direito franco pelo qual pás de nulitée sans grief, o qual, em tradução literal e livre implica na ideia de acordo com a qual não haverá nulidade sem prejuízo processual efetivo – artigos 278, 282 e seus consectários do Código de Processo Civil. Valem aqui os ensinamentos de Antônio Janyr Dall’agnol, em Invalidades Processuais, no sentido de que:

 

Em direito, e em especial no direito administrativo, é equivocado identificar ilegalidade e invalidez. A ilegalidade (no sentido amplo de irregularidade normativa) encerra um juízo de constatação, verificação ou conhecimento sobre uma específica relação entre normas (relação sintática): diz respeito à desconformidade de uma norma inferior em face de uma norma superior de observância obrigatória. Traduz juízo descritivo, segundo o qual norma inferior contraria norma superior, ou invade esfera própria de aplicação de norma especial, segundo o disposto em norma superior. A ilegalidade, a inconstitucionalidade, ou qualquer outra espécie de irregularidade jurídica, considerada neste sentido descritivo, encerra asserção presumidamente lógica (embora, por óbvio, também inevitavelmente axiológica). Mas a invalidez, reversamente, decorre de uma decisão jurídica, traduz um juízo normativo, adotado apenas a partir de uma ponderação entre o valor da legalidade/irregularidade e o valor da estabilidade das relações jurídicas, ou o valor de outro princípio jurídico reconhecido pelo sistema. A invalidez de um ato somente é decretada após uma avaliação de sua necessidade (isto é, decorre de um juízo sobre uma relação sintático-semântico-pragmática: norma-realidade norma da-utente da norma).
O juízo de invalidez normativa pressupõe o juízo de irregularidade da norma, mas nem toda irregularidade jurídica importa em invalidez.
Há irregularidades não invalidantes, ou, no mesmo dizer, ilegalidades não invalidantes. São inúmeras as situações em que o ordenamento preserva a norma editada irregularmente como válida (irregularidades formais sem prejuízo, normas referentes a situações consolidadas, atos de funcionários de fato ou atos cuja decretação de invalidez importaria grave dano a princípios relevantes do ordenamento). Mais do que isso: o ordenamento encarrega-se de prever diversos mecanismos de preservação e correção de normas ilegais, ou irregulares: a convalidação, a conversão e a estabilização de normas ilegais. Neste diapasão, pode-se afirmar que a invalidez é uma forma de sanção da ilegalidade e não um efeito lógico necessário da irregularidade normativa.
A validade é uma qualidade contra-fática. As normas valem até que sejam invalidadas. Não há invalidez (ausência de obrigatoriedade de norma jurídica) automática. Toda invalidez reclama decretação. É impróprio, portanto, tratar da invalidez
16 Voto de relator proferido no julgados de Processos administrativos que tramitam na Universidade Federal da Bahia, iniciados em 2005 na Faculdade de Direito dessa universidade, tombados sob os números 23066.037018/05-68, 23066.037016/05-32, 23066.037023/05-06, 23066.037027/05-59, 23066.037045/05-31, 23066.037047/05-66. como conseqüência normativa em sentido semelhante à conseqüência presente nas relações fáticas. Não há causalidade entre a irregularidade na composição do suposto normativo e a invalidade como conseqüência. A relação é de imputação, não de causalidade. Trata-se de conseqüência que exige valoração e decisão; não se contenta com o simples conhecimento. Não há invalidez como dado original e ontológico de qualquer norma. A invalidez é qualidade atribuída, derivada de um juízo de ponderação que excede a mera apreciação da norma de forma isolada”.

 

Nessa ordem de ideias se apercebe que o autor é sujeito processual dotado de grande poder, que tem anos para se preparar para a demanda (o tempo que leva para o direito prescrever, em uma ideia inicial – sem que se abordem aspectos como o da teoria da actio nata objetiva x actio nata subjetiva, por exemplo) enquanto o réu tem parcos quinze dias após a realização da audiência de tentativa de conciliação pelas regras do CPC/15 – daí a necessidade de estudar, com maior vagar as relações que unem o autor ao processo e as balizas que devem ser seguidas pelo Magistrado na análise do que resta posto pelo autor em sua demanda.

 

E vale dizer que o Juiz estará adstrito, preso em sua atuação funcional,  ao quanto tiver sido destacado na causa de pedir de uma petição inicial. Ou seja, a motivação da decisão judicial estará ligada ao quanto destacado na causa petendi (fatos básicos que estejam em relação lógica com o que se vai pedir, autorizando o acolhimento do pedido).

 

A tarefa de analisar o tema proposto não é das mais amenas eis que cuidará de analisar um fenômeno que não é unívoco, como ocorre no caso da motivação no direito brasileiro, isso porque não existe consenso a respeito da natureza jurídica da motivação na doutrina nacional, posto que existem, pelo menos, duas correntes a respeito do tema. Para a primeira corrente, a motivação seria o “iter lógico” utilizado pelo Magistrado para chegar a uma decisão, ou seja, seria a demonstração do raciocínio do Juiz para chegar à sua conclusão, servindo, portanto, a que se conheçam tais razões.

 

Esta corrente estaria mais alinhada com o pensamento de autores constitucionalistas que entendem que o fundamento político de existência de um Poder Judiciário seria, justamente, a sua imparcialidade, cujo controle seria feito, dentre outras formas, pela obrigatoriedade de motivação dos atos judiciais (nesse sentido a opinião da minha saudosa professora Ada Pellegrini Grinover). Observe-se, aliás, a respeito do tema, a opinião do Ministro Alexandre de Moraes (STF), para quem: “Bandrés afirma que a independência judicial constitui um direito fundamental dos cidadãos, inclusive o direito à tutela judicial e o direito ao processo e julgamento por um Tribunal independente e imparcial.”[1]

 

E, ainda mais, com a motivação, se permite ao interessado conhecer as razões que levaram o Juiz a decidir, o que viabiliza o seu direito de inconformismo diante da decisão, possibilitando o exercício do direito ao duplo grau de jurisdição, implícito na ordem constitucional pátria. É da essência do contraditório efetivo (contradicere – garantido não só no artigo 5º, LIV CF mas também no artigo 7º CPC) que se possa ter acesso ao que levou o Magistrado a decidir nesse ou naquele sentido – ou seja, o referido controle de imparcialidade.

 

O próprio Superior Tribunal de Justiça, enquanto órgão cuja função de padronização da legislação nacional infraconstitucional resta patente na Constituição Federal de 05.10.1.988 ( artigo 105 e seus consectários ), já se manifestou neste mesmo sentido, como se pode observar pelo teor da seguinte ementa:

 

A motivação das decisões judiciais reclama do órgão julgador, pena de nulidade, explicitação fundamentada quanto aos temas suscitados. Elevada a cânone constitucional apresenta-se como uma das características incisivas do processo contemporâneo, calcado no due process of law, representando uma garantia inerente ao Estado de Direito ( STJ – 4ª Turma, ROMS 6465-SP, Rel. Sálvio de Figueiredo Teixeira, 29.10.1.997, D.J.U. 09.12.1.997, p. 64.705 ).

 

Para uma segunda corrente, a motivação não seria um caminho percorrido pelo Magistrado, mas, ao contrário, seria um discurso para justificar a decisão, visando convencer os jurisdicionados a respeito de seu acerto[2]. Para esta vertente do pensamento jurídico, a motivação não seria, elemento de validade de uma decisão judicial, mas elemento que colaboraria com o escopo da jurisdição, guardando pertinência maior com a função social da jurisdição, enquanto pacificação social de conflitos.

 

De todo modo, seja pela adoção de uma, ou de outra destas correntes, não se consegue, com clareza, divisar o limite, ou a medida em que se teria um parâmetro para aferir o conteúdo mínimo de fundamentação de uma decisão judicial, malgrado todos concordarem com o fato de que se cuida de providência obrigatória. Observe-se que a norma contida no artigo 489, par. 1º e seus incisos do CPC/15 parecia ser de clareza solar a respeito das balizas que deveriam ser seguidas pelo Julgador, mas, em certa medida, em nome da viabilidade do sistema judiciário (dados do CNJ dão conta de uma ação nova a cada cinco segundos no Brasil) que juízes não deveriam analisar todos os argumentos alinhados em uma peça exordial – no entanto é necessário pontuar no sentido de que todos os argumentos aptos a levarem à prolação de decisão em sentido contrário devem ser afastados – sem isso não há contraditório mínimo (artigo 7º CPC).

 

Tal questão alcança relevo ainda maior em sede de análise da petição inicial, que é o primeiro pressuposto de regularidade processual, na medida em que, nos termos da teoria angular da relação jurídica processual, tem-se que somente haverá processo a partir do momento em que se despachar (e tal expressão será questionada adiante) ou distribuir uma petição inicial.

 

E, mais ainda, na petição inicial, conforme é cediço, estarão as linhas básicas da futura e eventual controvérsia jurídica, sendo certo que, de via indireta, a própria exordial acabará por dar os contornos do exercício do direito de defesa (direito de exceção contraposto ao direito de ação, iniciado pela petição inicial) na medida em que não teria sentido o réu defender-se em relação a fatos ou institutos não mencionados na petição inicial, delimitando, ainda, o próprio exercício da atividade jurisdicional (não se pode esquecer que o Magistrado deve ficar adstrito ao pedido, sob pena de proferir decisões nulas, como nos casos de decisões ultra, infra ou extra-petita).

 

E lembra-se aqui a ideia apontada por Pontes de Miranda, em seu Tratado das Ações, no sentido de que a defesa seria um contradireito e não um direito. Somente se exerce a defesa quando o autor já deduziu sua pretensão – a ideia é a de que não posso protocolar minha contestação no fórum antes que o autor tenha apresentado sua petição inicial, ou seja, somente posso exercer meu contradireito de defesa depois que o autor exerceu o direito de ação.

 

DIREITO COMPARADO

 

Modernamente, tal como apontado por Maria Thereza Gonçalves Pero,[3] podem ser constatados, pelo menos quatro sistemas de motivação de decisões judiciais, a saber: a) ordenamentos em que a motivação tem fonte em norma constitucional (modelo italiano, brasileiro e de outros países da América Latina); b) ordenamentos em que a motivação tem fonte em legislação ordinária (França, Alemanha e Áustria); c) ordenamentos em que a motivação se consolida no costume jurisprudencial, sem que haja previsão legal ou constitucional (Inglaterra, Canadá, Escócia e demais colônias inglesas à exceção dos Estados Unidos); e d), ordenamentos em que sequer existe costume, havendo omissão legal e constitucional a respeito do tema (Estados Unidos).

 

 Com relação ao último caso, ou seja, ao direito norte-americano, insta salientar que, embora o costume de motivar tenha sido adotado enquanto o país era uma colônia britânica, acabou sendo abandonado com a independência em 1.776 (até para que se verificasse um rompimento cultural com a sede imperial).

 

Costuma-se, aliás, ponderar, como regras, que os dois primeiros tipos de ordenamentos são encontráveis nos países que tem o direito de base romano-canônica (Civil Law), enquanto que os dois últimos tipos se encontram, com maior incidência em países que adotam o sistema da Common Law (fenômeno, aliás, explicável pela repetição de decisões fundadas em precedentes, que leva à massificação pelo sistema de stare decisis)[4].

 

O CPC/15 aproximou muito os dois sistemas processuais no Brasil, eis que se partiu da ideia da existência de princípios universais do processo civil (transnational principles rules) que vem sendo sistematizados pelo esforço conjunto de organismos como a ALI (American Law Institute) e da Unidroit capitaneada pelo italiano Michele Taruffo. A política de precedentes é um desses princípios transnacionais.

 

E esse fenômeno será mais sintomático na medida em que se constate que, atualmente, são inegáveis os efeitos da globalização sobre quase todo o planeta, não se podendo esquecer de que se cuida de um movimento de padronização sócio-política-cultural, visando uma hegemonia econômica dos países globalizantes em detrimento dos países globalizados, de modo que poderá ser observada uma tendência de adoção do sistema de common law em países que tradicionalmente mantiveram e mantém ordenamentos de base romano-canônica, como é caso do Brasil e de vários países da América Latina.

 

O risco de tal orientação, num sistema em que não se adota sequer o costume da fundamentação, haverá grande dificuldade de controle do conteúdo jurídico das decisões judiciais. Tal perigo, obviamente, tem suas dimensões ampliadas na medida em que se constata que o Poder Judiciário, que já tem seus órgãos de cúpula compostos por indicações do Poder Executivo, chanceladas pelo Senado Nacional. A politização do Poder Judiciário e a falta de preocupação com a motivação das decisões, sob o argumento de grande volume de serviços é algo extremamente perigoso para um país que adota o respeito a garantias como o contraditório pleno e não pífio e o devido processo legal.

 

Isso sem que se mencione o próprio esvaziamento do modelo de jurisdição estatal, através de uma lei ordinária, cuja constitucionalidade será reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal, instituindo o modelo de arbitragem no Brasil, permitindo julgamentos de equidade, nem sempre motivados, ou com a aplicação do direito pátrio.[5]

 

Não se pode perder de vista que o direito, aliás, é criado e desenvolvido por ação da jurisprudência de modo que, mesmo não havendo expressa previsão legal ou constitucional os Magistrados acabam por fundamentar suas decisões não para que se justifique o que foi feito, mas, ao contrário, para que se entenda como o ordenamento funcionará a partir do precedente criado. Fala-se hoje em função endoprocessual da motivação e função exoprocessual – ou seja, não basta mais convencer apenas as partes no sentido de que se faz justiça no processo (endoprocessual – inter pars) mas é preciso convencer a sociedade de que Justiça esteja sendo feita – o fenômeno exoprocessual típico das democracias participativas – regimes de governo em que se aplicam os valores da sociedade de confiança as justified trust destacadas linhas acima.

 

Tanto é assim, aliás, para que não se esqueça que a jurisdição, numa das suas possíveis acepções, tem como conceito à função social de pacificar conflitos, tal como preconizado por Francesco Carnelutti. No direito italiano, por exemplo, conforme assevera Michele Taruffo, na obra “La Motivazione della sentenza civile”, Ed. Padova, 1.975, a Constituição se refere à função política do dever de motivar como trâmite do controle difuso sobre o exercício do poder jurisdicional[6].

 

Basta, aliás, que se compulse o texto da Constituição da República Italiana, notadamente na sua norma contida no artigo 111, para que se verifique, de forma expressa, tal obrigatoriedade (o texto refere-se à obrigatoriedade de motivação das medidas judiciais, e, ainda, no mesmo artigo, existe a própria referência a um duplo grau em relação a sentenças e medidas referentes à liberdade pessoal).

 

E, como reflexo desta orientação, na legislação ordinária existe preceito expresso a respeito da obrigatoriedade da motivação das sentenças que seria, justamente, o contido no artigo 118 das Disposições de Atualização e Transitórias do Código de Processo Civil Italiano (o que, obviamente, deve ser analisado em conjunto com o disposto na norma contida no artigo 116 do próprio Código de Processo, que prevê que o Juiz deve julgar o feito de acordo com sua prudente convicção, salvo se a lei exigir de outro modo).

 

E, observe-se, tal como já dito, e ocorre no sistema constitucional pátrio, a obrigatoriedade de motivação se estende não só às sentenças (enquanto provimentos finais que extinguem processos, com ou sem o julgamento do mérito), mas a todas as medidas jurisdicionais (o que, obviamente, engloba as demais espécies de provimentos jurisdicionais). O CPC/15 deixa claro que qualquer decisão judicial deva ser fundamentada, autorizando a interposição de embargos de declaração em caso de qualquer omissão (artigo 1.022 e seus consectários CPC)

 

Com algumas variantes, mas mutatis mutandi, também disciplinando a motivação dos atos judiciais, estabelece a Constituição da República Portuguesa, notadamente, na norma contida no artigo 208, de forma expressa: “As decisões dos Tribunais são fundamentadas nos casos e nos termos previstos na lei.” Portugal, portanto, destoa do regime brasileiro e do italiano ao acabar por remeter a questão à lei ordinária, traçando mera norma programática, e, desta feita, não auto-aplicável, no que tange à fundamentação dos atos judiciais.

 

A doutrina aponta, ainda, outros países da América Latina e a própria Grécia, como exemplos de países que, como o Brasil, exigem, através de normas de natureza constitucional, a motivação das decisões judiciais[7]. As constituições dos países de common law, como já mencionado acima, não preveem tal disciplina, sobretudo a Constituição norte-americana.

 

Com a mesma orientação, embora se cuide de sistema jurídico autônomo e alternativo em relação à common law e ao direito de base romano-canônica, de se destacar a Constituição da República Popular da China, de 04.12.1982, que, ao tratar das liberdades públicas (artigos 33 a 56) e ao disciplinar a estruturação de seu Poder Judiciário (artigos 123 a 135), optou por não tipificar o dever de fundamentação de decisões.

 

 

A MOTIVAÇÃO NO DIREITO BRASILEIRO

 

Historicamente, tem-se percebido, tal como informa Maria Thereza Pero, desde a formação de Portugal, que, segundo alguns historiadores, passaria a ter registros formais com o primeiro desembarque de tropas romanas em 219 a.C., já se verificava, neste povo (conhecido por lusitanos) noções de respeito a um devido processo legal, ainda que não escrito, mas por seus costumes. Tal respeito a esse princípio se verificou em inúmeros forais e concílios, desde imemoriáveis tempos, podendo-se destacar: O foral de Castro de Xerez ( 974 d.c), o Concílio de Leão de 1.020, os Forais de Miranda de Ebro (1099), de Palenzuela (já sob a égide de Afonso VI), de Capeludos (1252), As leis gerais de D. Afonso II (Ordenações Afonsinas).[8]

 

Com o início da desvinculação entre o direito português e o brasileiro, já na Constituição Imperial de 1.824, artigo 179 (itens 13 a 17) também se iniciou a preocupação com os primados processuais e a necessidade de respeito ao devido processo legal, tendência que se seguiu em todas as nossas Constituições posteriores.

 

Aponta-se, inclusive, que, mesmo com a proclamação da independência, o país ainda continuou a adotar regras normativas portuguesas, por força do Decreto de 20.10.1823, que manteve, inclusive, o disposto no Livro III, Título LXVI, § 7º, primeira parte, das Ordenações Filipinas, dispondo sobre o dever dos Tribunais de lançarem os fundamentos de suas decisões, disposição mantida no Regulamento 737, de 25 de novembro de 1850.[9]

 

Mesmo na época dos Códigos de Processo Estaduais, que se seguiu, vários foram os exemplos de expressa previsão do princípio da motivação, podendo-se destacar, verbi gratia, o artigo 382 do Código de Processo Civil de Minas Gerais (de um brilhantismo pioneiro, exigindo, dentro outros requisitos, que a sentença fosse clara, sem divagações científicas e os motivos precisos da decisão), o artigo 333 do Código de Processo Civil de São Paulo, o artigo 322 do Código de Processo Civil do Maranhão, o artigo 231 do Código de Processo Civil do Paraná e o artigo 308 do Código de Processo Civil da Bahia.[10]

 

Neste quadro histórico, e sendo o dever de motivação, uma garantia do Juiz imparcial, e, portanto, desdobramento do princípio do devido processo legal (o due process of law preconizado pela doutrina federalista norte americano, desde a Magna Charta Libertatis de 1.215), se tem aceito em doutrina, todos esses diplomas, como marcos significativos do dever de motivação no nosso ordenamento jurídico.

 

E tal como no direito italiano, também ocorre, no direito brasileiro, disposição constitucional expressa a respeito da motivação das decisões judiciais, como se verifica, pelo teor da norma contida no artigo 93, inciso IX da Constituição Federal de 05.10.1.988, com iguais previsões na legislação ordinária. De acordo com nossa Magna Carta: “Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões sob pena de nulidade.”

 

E o inciso seguinte do mesmo artigo 93 da Carta Política de 1.988 (qual seja, o inciso X), já é expresso em consignar que mesmo as decisões administrativas dos Tribunais (ou seja, decisões que não teriam cunho eminentemente jurisdicional, sob uma ótica estritamente técnica) devem ser motivadas. No ambiente do CPC/15 em seu art. 489, § 1º, este não afeta a liberdade que o juiz tem para valorar a prova, com a total Autonomia na valoração da prova e necessidade de adequada motivação, ressalte-se que a regra do art. 489, § 1º, CPC/2015, trata do 2º elemento (motivação), e não do 1º (liberdade na valoração da prova).

 

Corroborando tal entendimento, os artigos 371 e 372 comprovam a afirmação de que subsiste a liberdade de valoração da prova no CPC/2015, ao indicar que o juiz apreciará a prova atribuindo-lhe o valor que entender adequado, devendo, contudo, indicar as razões da formação do seu convencimento, ou seja, o Juiz não se configura estático, permanecendo a sua liberdade pautada na legislação e racionalidade.

 

Vale, ademais, apontar no sentido de que a motivação da decisão judicial equivale ao exame da causa de pedir de uma petição inicial enquanto que o dispositivo equivale ao pedido na análise de similitude entre as peças processuais em testilha. Assim, percebe-se de forma clara que, qualquer que seja a espécie de decisão que redunde na apreciação da petição inicial, de todo modo, haverá necessidade de motivação, ainda que concisa.

 

Obviamente que devem ser contidos abusos nesta interpretação, posto que existe ao menos uma categoria de provimentos jurisdicionais que não seria dotada de conteúdo decisório explícito, qual seja, a categoria dos despachos de mero expediente (decisões que não põem fim a relações jurídicas processuais, nem tampouco resolvem questões, apenas e tão somente dando regular impulso oficial ao processo).

 

Assim não sendo dotados de expresso conteúdo decisório, tem-se entendido que não haveria necessidade de fundamentação em relação aos despachos de mero expediente. Mesmo assim, aponta o Ministro Marco Aurélio Mello (STF) no sentido de que, mesmo contra o texto expresso de lei que aponta no sentido de que despachos são irrecorríveis, a garantia constitucional da motivação autorizaria que fossem interpostos embargos de declaração mesmo em face de tais despachos para se obter o aclaramento acerca das razões de decidir – as ratio essendi ou ratio decidendi, como queiram.

 

 

ESPÉCIES DE MOTIVAÇÃO – CASOS PRÁTICOS

 

 

O grande problema é o de que tanto a doutrina quanto a jurisprudência referem-se a diversos tipos de motivação de decisões que pode vir a ocorrer no direito brasileiro. Inicialmente tem-se a motivação expressa e completa, que não traz maiores problemas hermenêuticos eis que se adequa perfeitamente ao perfil constitucional que se pretendeu conferir ao problema.

 

Nesta espécie o Magistrado se manifesta de forma clara sobre todos as questões processuais a serem examinadas, o que não trará qualquer mácula ao trabalho do Juiz. Contudo, com relação aos outros tipos de motivação, problemas poderão vir a ocorrer na forma que se passará a expor.

 

Isso porque, parte da doutrina entende possam ocorrer algumas situações que impliquem em derivações ou desvios do dever de motivar as decisões judiciais.[11] Nestes casos poderiam ser analisadas:

 

I ) Motivação implícita: Neste caso, a motivação existe, mas não se exprime por símbolos gráficos na sentença. Ocorre, por exemplo:

 

a) quando o Juiz deixa de se referir a algum ponto do processo, por considera-lo supérfluo diante dos outros pontos já considerados.

 

Com relação a esse tópico, poder-se-ia analisar a situação em que um Magistrado julgue extinto um processo, com julgamento do mérito, reconhecendo a prescrição ou a decadência (artigo 487 do Código de Processo Civil), entendendo desnecessária a análise das demais teses debatidas pelas partes na petição inicial e na contestação.

 

Neste caso, obviamente, entende-se não ocorrer qualquer nulidade, posto que o reconhecimento da prescrição tornaria bizantina qualquer outra consideração a respeito do mérito da causa (e não se pode esquecer que se deva privilegiar os princípios da celeridade e economia processuais).

 

b) quando diante de teses contrapostas, a aceitação motivada de uma delas, deixa implícitas as razões de rejeição de outra.

 

Essa hipótese é mera derivação quantitativa da anterior, pois se refere a apenas duas teses, uma contraposta à outra, como ocorreria, v.g. no caso de se ponderar que determinada alteração de alíquota seria inconstitucional, numa ação declaratória de inexistência de débito, tese esta contraposta pelo Procurador Fazendário em contestação, de modo que o Magistrado, acolhendo uma, ou outra tese, deixasse de se referir à não acolhida.

 

Nesta hipótese de se entender que haveria prejuízo na falta de motivação, posto que não basta que o Magistrado acolha uma das teses apontando argumentos favoráveis, deverá, também, explicar porque não acolheu a outra tese, pois o sucumbente tem o direito de ser informado, de forma motivada, das razões da escolha (aqui a discussão não se daria por mera chinesice).

 

Essa é a questão que tem sido elegantemente tratada pela doutrina como a questão atinente aos obiter dicta (obiter dictum no singular) no que tange a argumentos necessários para afastamento da tese vencedora em sentença (sempre se lembrando que na sentença o juiz, do ponto de vista lógico não é um ente essencialmente imparcial, ele escolhe uma tese e fundamenta no sentido de porque ela seria correta – a efetiva imparcialidade se exerce no controle das razões dessa motivação).

 

c) quando a solução de uma questão resulte em precluir o exame das questões sucessivas.

 

Obviamente que, em relação a esse tópico, dentre as várias espécies de preclusão (temporal, lógica ou consumativa), se pretende referir a uma preclusão lógica, ou seja, a uma incompatibilidade lógica. Nesta hipótese não ocorrerá prejuízo ao sucumbente, não havendo que se falar em reconhecimento de nulidade do ato judicial, posto que o que se privilegia também são os princípios da celeridade e economia processuais – questões que ganharam foros de constitucionalização com a garantia do tempo razoável de duração do processo.

 

Isso porque se o Magistrado entender que o réu não conseguiu provar que mantém crédito em relação ao autor de uma ação de cobrança, estará, pelo óbvio, desincumbido de se manifestar a respeito da tese de que ocorreria compensação, por razões óbvias. Mas, fala-se, ainda em:

 

II ) Motivação concisa. Para decisões que não tenham eficácia de sentença (v.g., decisões interlocutórias e despachos de mero expediente). Consiste na referência reduzida ao princípio ou ao artigo de lei aplicável, sem maiores considerações. Do mesmo modo, o Supremo Tribunal Federal já decidiu que a simples referência a uma Súmula, seria dado suficiente para motivação de uma decisão, evitando o reconhecimento de qualquer nulidade. Sobre o tema, de se destacar:

 

Agravo Regimental – Improcedência da alegação de negativa de acesso ao Poder Judiciário. – Acórdão que se baseia, par decidir, em indicação de Súmula aplicável está motivado, pois basta o interessado examinar os arestos em que esta se estriba para saber quais os fundamentos do enunciado da Súmula. AI 177977-2 ( AgRg. ) – Rel. Min. Moreira Alves[12].

 

Tal entendimento, pelo óbvio, privilegia o próprio papel da súmula no ordenamento jurídico brasileiro, em nota que evidencia uma tendência de reforçar seu papel na cultura jurídica pátria, mormente após o advento da implementação de um sistema de precedentes que iniciou ainda no regime anterior (repercussão geral e recursos repetitivos), mas que foi reforçado pelo sistema atual com o IRDR e o IAC.

 

 Em sede recursal, por exemplo, várias adaptações legislativas foram feitas neste sentido, podendo-se destacar, ainda à guisa de exemplificação, o poder do relator do recurso de agravo poder negar, desde logo, seguimento ao agravo se o recurso confrontar com o teor de súmula ou jurisprudência dominante de Tribunal Superior..

 

De se aceitar, sem maiores reservas, tal espécie de motivação em relação às próprias sentenças que julgam extintos processos sem julgamento do mérito, dispensando-se, inclusive, o relatório – como se dá no caso de sentenças homologatórias e sentenças no sistema dos Juizados Especiais Cíveis.

 

Assim, basta que o Juiz julgue extinto o processo, sem julgamento do mérito, nos termos da norma contida no artigo 485 do Código de Processo Civil, sem maiores delongas, considerações ou relatórios, caso o autor pleiteie a desistência da ação, com a expressa anuência do requerido, ou em situações de confusão (hoje não mais vistas como extinções sem resolução do mérito). Do mesmo modo ocorrerá, e.g., em relação à à litispendência ou ao reconhecimento da coisa julgada ( nestes casos, bastará que o Magistrado esclareça em relação a quais feitos reconhece os aludidos fenômenos, indicando o fundamento da extinção ).

 

Aliás, já se tem observado a tendência à supressão do relatório das decisões judiciais, antes uma suposta garantia de que o Magistrado leria o processo como um todo (argumento pífio, diante da necessidade do Juiz fundamentar toda a sua decisão), desde o advento da Lei 9.099/95, que criou o Juizado Especial Cível, com competência para as causas cíveis até 40 (quarenta) salários-mínimos (no âmbito dos Juizados Federais esse limite sobe para sessenta salários-mínimos, como sabido). Tal diploma legal, privilegiando, de forma expressa, os princípios da celeridade, economia e informalidade processuais (artigo 2º), aboliu o relatório como parte integrante da sentença de mérito (artigo 38).

 

E nem se argumente de qualquer burla da norma constitucional diante da concisão da motivação, ou da ausência de relatório, posto que o jurisdicionado continuará a ser informado a respeito das razões do Magistrado, podendo, se assim entender, recorrer da decisão. Assim, o mesmo Tribunal em comento (o E. Supremo Tribunal Federal), já decidiu que:

 

 

Fundamentação Suficiente. Para atender à exigência de fundamentação contida no artigo 93, IX da CF, não tem o órgão jurisdicional de dar respostas a todas as alegações suscitadas pela parte, que se consideram implicitamente rejeitadas pela motivação por ele acolhida. HC 70.179-SP, Rel. Min. Carlos Velloso, j. 25.02.1.997.[13]

 

Mas, de todo modo, insta salientar que a concisão não equivale à obscuridade ou à omissão (ausência de fundamentos). Como assevera Maria Thereza Gonçalves Pero, pode ser concisa, mas desde que suficiente.[14]

 

III ) Motivação per relationem ( aliúnde ou referencial ). O julgador ou se refere à outra decisão ( por exemplo, a decisão do Tribunal em relação à sentença de 1º grau ou o Juiz refere-se ao seu posicionamento em outro processo ) ou à manifestação de alguma das partes ou do Ministério Público. Geralmente não tem sido aceita, acarretando nulidade por omissão de fundamentação (embora existam exceções, como, por exemplo, se um Ministro do STF se referir, de forma expressa a julgamento anterior, publicado no DJU, com referência ao número do julgado e data da publicação, permitindo-se a conferência por quem quer que seja).

 

O próprio Pretório Excelso já se manifestou sobre a questão, como se pode observar, por exemplo, pelo teor do seguinte Julgado:

 

Não é nulo acórdão que adota como razão de decidir, por remissão, os fundamentos de parecer oferecido em segunda instância pelo Ministério Público, na qualidade de custus legis.” HC 73.545-SP, Rel. Min. Ilmar Galvão, j. 11.06.1.996[15].

 

E, mesmo em relação à sentença de primeira instância, também já se manifestou o mesmo Tribunal, no mesmo sentido:

 

Recurso Extraordinário. Acórdão recorrido que adota os fundamentos da sentença de primeiro grau. Alegada violação aos artigos 93, IX da CF/88 e 23, § 6º da EC nº 01/69. Prequestionamento. Não se pode dizer não fundamentado o acórdão que adota os fundamentos da sentença de primeira instância, incorporados como razão de decidir e, por isso, a confirma. Ademais, a regra do artigo 93, IX da Constituição não permite que se declare anulável a decisão de segunda instância que confirma a da primeira, pelos seus fundamentos[16].

 

Mesmo em doutrina, já se verifica uma tendência de flexibilização das rigorismo científico do processo civil, em nome da sua instrumentalidade. O próprio Nelson Nery Jr., com propriedade, ressalta que deve haver uma motivação substancial, e não meramente formal das decisões judiciais, mas assevera situações em que as motivações aliúndes poderiam vir a ser aceitas. Neste sentido, manifesta-se o processualista:

 

Não se consideram “substancialmente” fundamentadas as decisões que afirmam que “segundo os documentos e testemunhas ouvidas no processo, o autor tem razão, motivo por que julgou procedente o pedido.” Esta decisão é nula porque lhe falta fundamentação. De todo modo é fundamentada a decisão que se reporta a parecer jurídico constante dos autos, ou às alegações das partes, desde que nessas manifestações haja exteriorização de valores sobre as provas e questões submetidas ao julgamento do Juiz. Assim, se o Juiz na sentença diz acolher o pedido “adotando as razões do parecer do Ministério Público”, está fundamentada referida decisão, se no parecer do parquet houver fundamentação dialética sobre a matéria objeto da decisão do Magistrado[17].

 

Tais entendimentos, obviamente, como já asseverado acima, na verdade, apenas e tão somente vêm a confirmar a tendência de desapego ao formalismo, fazendo com que as questões de mérito, ou seja as relações jurídicas de direito material que estão sendo discutidas em processos, não se percam em virtude de discussões de matérias processuais de altíssima indagação, de notável e relevante valor científico, mas de deletérios efeitos à solução e pacificação de conflitos de interesses, fatores que devem ser sopesados pelos operadores do ordenamento jurídico.

 

Sobre a questão da falta de validade de uma sentença incompreensível quanto ao alcance de seus termos (questão atualíssima a luz do advento da norma contida no artigo 489, parágrafo 1º e seus incisos CPC) de se aduzir, o quanto consignado por Mário Luiz Elia Júnior (in http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI36053,11049Vicios+transrescisorio...):

 

A validade da sentença, por seu turno, depende do atendimento a requisitos como julgamento dentro dos limites do pedido e respeito à formula, à estrutura, prevista pelo legislador para a sentença, que deverá conter relatório, fundamentação e decisório. Sentença sem relatório, fundamento ou dispositivo, é sentença nula. As sentenças ultra citra e extra petita são nulas (mas a nulidade das sentenças citra e ultra petita devem ser vistas como relativas, eis que a parte julgada efetivamente pode ser aproveitada). Ainda sobre a sentença citra petita, o que passou em branco pode ser renovado, em outra ação, mesmo que não tenha havido a interposição de embargos declaratórios. Sentença não fundamentada é nula. São nulas, também, as sentenças proferidas em processo desenvolvido sem atendimento aos pressupostos de validade dos atos jurídicos processuais realizados no bojo da relação jurídica processual (ditos inapropriadamente ‘’pressupostos de validade do processo ou da relação jurídica’’). São sentenças existentes, porém nulas ipso iure, insanáveis mesmo com o trânsito em julgado: sentença prolatada em demanda na qual não houve ciência de seus termos pelo réu (art. 219 do CPC). A sentença nula, nessa situação, não precisa ser rescindida.

 

 

DEFERIMENTO E INDEFERIMENTO DA PETIÇÃO INICIAL

 

No ordenamento jurídico brasileiro, de se atentar para a circunstância de que a disciplina jurídica do recebimento da petição inicial se encontra fundada, sobretudo, nos artigos 330 e 485, inciso I, ambos do Código de Processo Civil. E, nestes artigos se encontram as noções de inépcia e indeferimento, numa verdadeira relação de espécie e gênero, sendo aquela mais restrita que este, que a englobaria (embora no cotidiano forense se verifique que os profissionais, de forma atécnica, venham se utilizando de ambas as expressões como sinônimas).

 

De todo modo, insta salientar que, ao se analisar o argumento no sentido do recebimento, ou não, de uma petição inicial (e se considera proposta a demanda com o despacho ou distribuição de uma petição inicial) se trata de uma verdadeira questão em sentido técnico processual. Isso porque, conforme é cediço, a noção de questão se acha diretamente relacionada àquela de uma controvérsia instaurada no processo, ou melhor explicando, partindo-se do pressuposto que um ponto processual seja tudo aquilo sobre o que o Magistrado deva analisar para decidir, quando houver controvérsia a respeito de um ponto processual, estará caracterizada a questão sob o ponto de vista da técnica processual.

 

E tal questão, obviamente, estará ligada às mais das vezes, a uma noção de falta de pressuposto processual (e neste tópico se inserem os requisitos de regularidade da petição inicial, sobretudo os aludidos no artigo 219 e seus consectários do Código de Processo Civil) e de falta das antigas condições da ação (como é sabido o atual CPC parece não ter repetido a redação do artigo 301 CPC/73 que expressamente se referia a uma carência de ação, ou seja, afastou-se o novo diploma da orientação de Chiovenda que nos idos de 1.900 na Itália antevia condições da ação em categoria diversa dos pressupostos processuais – hoje não se vê mais sentido em tal separação, sendo certo que agora a possibilidade jurídica do pedido equivale a um exame de mérito e a legitimidade e o interesse são vistos como pressupostos processuais).

 

E vale ressaltar aí, a salutar lição do pragmático adágio de direito romano glosado pelo legislador medieval no sentido de que verba cum effectu sunt accipienda – que em tradução literal e livre implica na ideia de acordo com a qual a lei não possui palavras ou expressões inúteis (verdadeiro princípio geral de direito como aponta Carlos Maximiliano em seu conhecido Tratado de Hermenêutica Jurídica). Se a lei exige qualificação, essa somente não será cobrada se for impossível de ser obtida, o que deve ser informado ao Juízo na peça exordial.

 

Assim, se o Magistrado recebe a petição inicial, o que, às mais das vezes é feito de forma automática, com o lançamento de uma simples decisão “cite-se”, está, na verdade, proferindo uma decisão interlocutória (e não um simples despacho de mero expediente, como se poderia fazer crer), isso porque está implicitamente resolvendo uma controvérsia, e decidindo que o processo deve ser formado, estando ausentes todos os vícios mencionados no artigo 330 e seus consectários do Código de Processo Civil. Poder-se-ia, inclusive, pensar no sentido de uma preclusão lógica para indeferimento posteriores da petição inicial, por exemplo, na fase do saneamento eis que seria dever do Juiz já apontar previamente as falhas da exordial.

 

E observe-se no sentido de que  se tem considerado com direito subjetivo da parte, emendar ou aditar a peça exordial com aproveitamento do processo, não se podendo extinguir de plano processos, por inadmissão da peça exordial, sem permitir o reparo de eventual falha – isso pode implicar até mesmo em casos da aferição da responsabilidade funcional do Magistrado – e vivemos tempos difíceis em que o descumprimento de prelados de legalidade podem ser vistos como atos de improbidade.

 

Do mesmo modo, se a indefere, estará proferindo sentença, ainda que terminativa (fundada no artigo 485, inciso I do mesmo diploma legal – com ênfase no fato de que poderá, inclusive, indeferir julgando o mérito, como ocorre no caso específico da prescrição e da decadência, ou quando já se tem decisão firmada em recurso repetitivo ou IRDR sobre o demanda e o julgamento depender exclusivamente de questões de direito), a qual, obviamente, deverá ser fundamentada (mesmo que de forma concisa, como analisado acima). Nesse caso, em havendo apelação, haverá que se aplicar o chamado efeito regressivo recursal (alguns a ele se referem como efeito diferido), com possibilidade do Magistrado rever seu próprio ato, antes da subida do recurso ao Tribunal.

 

Tal questionamento é de extrema importância, porque, em primeiro lugar, dependendo da opção do Magistrado, ou seja, deferimento ou indeferimento, poder-se-á ter uma decisão interlocutória ou uma sentença, o que, em primeiro lugar, refletirá na própria questão da possibilidade de recurso em face desta decisão. Ora, se fosse entendida tal espécie de decisão como despacho de mero expediente, não se trataria de ato judicial passível de recurso (quando muito poder-se-ia lançar mão de uma ação autônoma de mandado de segurança para a revisão do ato em 2ª Instância, posto que, conforme é cediço, não mais existe, desde a revogação do Código de Processo Civil de 1.939, a chamada correição parcial).

 

Mas, como dito acima, partindo-se do pressuposto segundo o qual ora cuidar-se-á de decisão interlocutória e ora cuidar-se-á de sentença, inequivocamente estará assegurado o direito de recurso da parte que não concordar com o teor da decisão (sendo importante não esquecer que, em cada caso, tratar-se-á de um recurso específico, seja de agravo de instrumento ou retido, seja a apelação).

 

Seja num ou noutro caso, inequivocamente, deverá ocorrer a motivação da decisão, sob pena de expressa nulidade, o que ganha capital importância quando o assunto se refere ao recebimento da petição inicial. Isso porque, pela práxis forense, analisando-se de forma maciça os processos recebidos diariamente nos Fóruns, perceber-se-á que os Magistrados, às mais das vezes, de forma lacônica, lançam a decisão “cite-se” ou equivalente “cite-se com as cautelas legais”, etc... O artigo 489 CPC veda decisões que se prestariam a serem aplicadas em qualquer tipo de situação (no âmbito penal o STJ tem anulado provas deferidas com a expressão “defiro” ou nos termos da cota do MP defiro.

 

Ora, como já visto, tal decisão tem natureza de decisão interlocutória, e, portanto, pode ser desafiada pelo recurso de agravo, de instrumento ou retido, assim, deve ser motivada, ainda que de forma concisa, o que, reitere-se, não vem ocorrendo. Bastaria, aliás, que o Magistrado alterasse sua decisão inicial para, por exemplo: “Presentes os requisitos do artigo 219 e seus consectários do Código de Processo Civil, e não vislumbrando as hipóteses do artigo 330 e consectários do mesmo codex, recebo a petição inicial e determino a citação do réu ou designo audiência de conciliação para o dia tal”.

 

Num caso como este, em que se está referindo o Magistrado a uma motivação concisa, percebe-se o claro atendimento à norma constitucional, prevenindo-se eventual alegação de ocorrência de nulidade processual, o que poderia ser obtido sem maiores ônus para o sistema judiciário, já assoberbado e azafamado pelo acúmulo de serviços que enfrenta de forma generalizado (isso porque, com a informatização, basta que se altere a decisão tradicional por essa ou por modelo congênere, desde que se faça um efetivo controle das petições iniciais, antes de recebê-las).

 

CONCLUSÕES

 

Ante todo o exposto, de se concluir que, ao receber uma petição inicial, o Magistrado, obviamente, estará proferindo uma decisão interlocutória, analisando questão implícita (se for incluída à indagação, a questão referente ao indeferimento, estar-se-ia inserindo a possibilidade de inclusão de sentenças terminativas e definitivas, estas últimas no caso da prescrição e da decadência). E, assim sendo, dúvida não há no sentido de que se trate de decisões que deverão ser, sempre, motivadas, sob pena de reconhecimento de sua nulidade.

 

Tal motivação, ademais, deverá ser expressa, ou, quando muito, concisa (nunca per relationem) eis que apta à formação de coisa julgada material (no caso das sentenças), com todas as implicações no que tange aos seus limites objetivos e subjetivos, devendo-se preconizar que, diante da gravidade da situação, não se admitiria uma regularidade meramente formal da liberdade pública referente ao dever de motivar, garantidor da imparcialidade dos órgãos jurisdicionais.

 

Por derradeiro, e, a contrario sensu, de se ponderar que, mesmo quando não se exigisse o rigor formal supramencionado, sempre deveria o Magistrado, para demonstrar sua imparcialidade, fundamentar, ainda que brevemente, suas decisões, mesmo que de recebimento, quando apenas resolve a questão implícita acerca do prosseguimento do feito. Isso porque, tal como já mencionado acima, mesmo com o acúmulo de serviços, não se pode olvidar que os avanços da informática permitem ao operador do sistema jurídico, preparar decisões sucintas em série, o que seria recomendável (obviamente somente seriam lançadas após o prévio exame da peça), com alusão ao fato de que petição reúne condições para ser recebida, estando ausentes os vícios que impediriam o seu recebimento.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

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NERY JR., Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. São Paulo: Revista dos Tribunais. Brasil. 1995.

MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado.3ª. ed. São Paulo: RT, 1983, t. 4, p. 4.

NOJIRI, Sérgio. O Dever de Fundamentar as Decisões Judiciais. São Paulo: Revista dos Tribunais. Brasil. 2000.

PERO, Maria Thereza Gonçalves. A Motivação da Sentença Civil. São Paulo: Saraiva. Brasil. 2001.

TARUFFO, Michele. La Motivazzione della sentenza civile. Pádova: Padova. Itália. 1975.

 

[1] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 7ª Ed. São Paulo: Atlas. 2000. p. 431.

[2] GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel; CINTRA, Antônio Carlos Araújo. Teoria Geral do Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989. p. 56.

[3] PERO, Maria Thereza Gonçalves. A motivação da Sentença Civil. São Paulo: Saraiva. 2001.

[4] DAVID, René. Os grandes sistemas de direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes. 1998. p.284.

[5] SILVA, Júlio César Ballerini. Críticas ao Modelo de Arbitragem no Brasil. Revista Eletrônica da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - Campus de Poços de Caldas. vol. I. 2001. Disponível na internet em: <www.pupcaldas/graduação/direito>.

[6] Taruffo, Michele, Apud PERO, Maria Thereza Gonçalves, op. cit. p.

[7] NERY JUNIOR. Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. 2ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 157.

[8] Pero, Maria Thereza Gonçalves, op. cit.

[9] NOJIRI, Sérgio, O Dever de Fundamentar as Decisões Judiciais. São Paulo: Revista dos Tribunais. pp. 27-28.

[10] NERY JÚNIOR, Nelson. Op. cit. p. 157.

[11] Pero, Maria Thereza Gonçalves, op. cit.

[12] Informativo STF nº 49.

[13] Informativo STF nº 61.

 

 

[15] Informativo STF nº 35

[16] STF. RE 179.557, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJU 13.02.1998.

[17] NERY JÚNIOR, Nelson, Op. cit. p. 159.